|conto| AUX ARMES, CITOYENS! (UM CONTO AMBIENTADO EM 1932)


- Acorda menino! Vais perder a hora e chegar atrasado! Gritou lá do quintal, com uma cestinha de ovos na mão esquerda e um maço de couve na outra, a mãe dona Crisálida.
Era uma quarta-feira, 22 de julho. Um dia nublado e frio no inverno paulistano, daqueles que ninguém deixa o calor do lar sem um cachecol e um casaco mais quente. Virgílio deu uma resmungada, cobriu e descobriu a cabeça, coçou a ponta do nariz e levantou-se de um pulo da cama, berrando:
- Rosinaaaa! E a farda? A faaaarda?
A irmã, surgindo da porta da cozinha com um avental xadrez, responde:
- A Setembrina ficou de trazer ontem, me deixa olhar no quarto de mamãe.
De fato, a farda, bela, engalanada, novinha em folha no seu cáqui marcial, estava estendida sobre a cama. Ao lado dela, a cobertura de cabeça que fazia conjunto com o vestuário de um voluntário do Batalhão 9 de julho, inscrito e alistado na leva de moços que desejavam dar seu contributo à causa paulista que, segundo se dizia, era a causa do Brasil.
Quarenta minutos depois, a buzina soou na rua com insistência. Era o pai, doutor Antenor, advogado com boa clientela, que aguardava ao volante do automóvel Chrysler 1931, para levar o filho à estação da Luz.
Dona Crisálida, trajando luto há dez anos pela morte do pai, usava um chapéu recém comprado no Mappin Stores, combinando com o negrume do vestido. O embarque do filho, um voluntário paulista para as “trincheiras da lei” era para ela o orgulho de sua vida. Imaginava o filho um herói, o pai, em suas reflexões cristãs, via-o como um mártir. A irmã, bem, a irmã aproveitava para flertar com Rosendo, um vizinho da rua de cima que também se alistara, mas em outro batalhão, o Arquidiocesano. Rosina no dia da partida dele prendeu em sua farda uma medalha de São José para guiar e guardar seus passos de soldado. O moço prometeu voltar para se casar com ela.
O embarque de Virgílio seria exatamente às dez horas da manhã com o seu batalhão perfilado na gare da Luz desde as nove e meia. O Secretário de Justiça, Dr. Waldemar Ferreira, representando Sua Excelência o governador Pedro de Toledo, dirigiu algumas breves palavras de encorajamento aos alistados e pediu palmas aos circunstantes, saudando a valentia e o brio dos moços de Piratininga que partiriam num comboio rumo à Campinas e de lá, para alguma trincheira entre São Paulo e Minas.
- Preparar para o embarque! Gritou um sargento rechonchudo, conhecido pela alcunha de Mata-Galos, por conta de seu vício nas rinhas galináceas.
Os moços se despedem de seus parentes entre choros, risos nervosos ou gracejos.
- Filho - diz doutor Antenor, lacrimoso - não vá se expor demais às balas da canalha getulista. Manda bala! Manda bala! Concluiu com um leve tapa no braço esquerdo do filho.
E a mãe, enlutada, mão pousada sobre o peito, entre um soluço e outro, diz:
- Que Jesus te acompanhe meu filho! Escreva, manda notícias que eu aqui fico aflita rezando por tua volta. Não deixe de fazer tuas orações antes de dormir.
E dormir, para ela, deveria ser a coisa mais comum numa guerra. É por isso que o Céu é para as mães. Por causa de sua ingenuidade.
O moço nada respondeu, emocionado, contendo o choro de quem nunca saiu de casa para ir embrenhar-se numa guerra que já reputavam vitoriosa. Apenas um aceno positivo com a cabeça e, então, o trem apitou saindo lentamente, carregando os novos soldados, como bois para o matadouro.
Na saída da estação, cumprimentando alguns velhos conhecidos das Arcadas que também mandaram seus rebentos para o front, doutor Antenor, num arroubo patriótico e advocatício, dirigiu-se a um pau d’água que, sentado no meio fio, assistia tudo com uma expressão de inocência e interrogação:
- São Paulo precisa de sua coragem, homem! Aliste-se!
E o pau d’água, banguela e com a cachaça escorrendo pelo canto da boca, responde após um brevíssimo segundo de reflexão etílica:
- São Paulo não é aquele santo que tem uma espada e um livro nas mãos?
- É sim, senhor! Respondeu prontamente o advogado, ao que fora confirmado pelos presentes, um deles, inclusive, padre recém ordenado, vigário do interior que viera para se despedir de um irmão soldado.
O pobre diabo do cachaceiro olhou ao redor, ajeitou a gola puída do paletó encardido e respondeu decididamente:
- Então, se ele for à frente eu vou depois. Não sei usar espada, mas fico segurando o livro dele pra ninguém roubar.
Tombou na calçada com a garrafa da cana quase vazia. Dispersou-se a concentração emudecida.

Rodrigo Ruiz
http://1932emprosa.blogspot.com.br/

Eric Apolinário
Pesquisador - |1932|Frente Leste|
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