-
Acorda menino! Vais perder a hora e chegar atrasado! Gritou lá do quintal, com
uma cestinha de ovos na mão esquerda e um maço de couve na outra, a mãe dona
Crisálida.
Era
uma quarta-feira, 22 de julho. Um dia nublado e frio no inverno paulistano,
daqueles que ninguém deixa o calor do lar sem um cachecol e um casaco mais
quente. Virgílio deu uma resmungada, cobriu e descobriu a cabeça, coçou a ponta
do nariz e levantou-se de um pulo da cama, berrando:
-
Rosinaaaa! E a farda? A faaaarda?
A
irmã, surgindo da porta da cozinha com um avental xadrez, responde:
-
A Setembrina ficou de trazer ontem, me deixa olhar no quarto de mamãe.
De
fato, a farda, bela, engalanada, novinha em folha no seu cáqui marcial, estava
estendida sobre a cama. Ao lado dela, a cobertura de cabeça que fazia conjunto
com o vestuário de um voluntário do Batalhão 9 de julho, inscrito e alistado na
leva de moços que desejavam dar seu contributo à causa paulista que, segundo se
dizia, era a causa do Brasil.
Quarenta
minutos depois, a buzina soou na rua com insistência. Era o pai, doutor
Antenor, advogado com boa clientela, que aguardava ao volante do automóvel
Chrysler 1931, para levar o filho à estação da Luz.
Dona
Crisálida, trajando luto há dez anos pela morte do pai, usava um chapéu recém
comprado no Mappin Stores, combinando com o negrume do vestido. O embarque do
filho, um voluntário paulista para as “trincheiras da lei” era para ela o
orgulho de sua vida. Imaginava o filho um herói, o pai, em suas reflexões
cristãs, via-o como um mártir. A irmã, bem, a irmã aproveitava para flertar com
Rosendo, um vizinho da rua de cima que também se alistara, mas em outro
batalhão, o Arquidiocesano. Rosina no dia da partida dele prendeu em sua farda
uma medalha de São José para guiar e guardar seus passos de soldado. O moço
prometeu voltar para se casar com ela.
O
embarque de Virgílio seria exatamente às dez horas da manhã com o seu batalhão
perfilado na gare da Luz desde as nove e meia. O Secretário de Justiça, Dr.
Waldemar Ferreira, representando Sua Excelência o governador Pedro de Toledo,
dirigiu algumas breves palavras de encorajamento aos alistados e pediu palmas
aos circunstantes, saudando a valentia e o brio dos moços de Piratininga que
partiriam num comboio rumo à Campinas e de lá, para alguma trincheira entre São
Paulo e Minas.
-
Preparar para o embarque! Gritou um sargento rechonchudo, conhecido pela
alcunha de Mata-Galos, por conta de seu vício nas rinhas galináceas.
Os
moços se despedem de seus parentes entre choros, risos nervosos ou gracejos.
-
Filho - diz doutor Antenor, lacrimoso - não vá se expor demais às balas da
canalha getulista. Manda bala! Manda bala! Concluiu com um leve tapa no braço
esquerdo do filho.
E
a mãe, enlutada, mão pousada sobre o peito, entre um soluço e outro, diz:
-
Que Jesus te acompanhe meu filho! Escreva, manda notícias que eu aqui fico
aflita rezando por tua volta. Não deixe de fazer tuas orações antes de dormir.
E
dormir, para ela, deveria ser a coisa mais comum numa guerra. É por isso que o
Céu é para as mães. Por causa de sua ingenuidade.
O
moço nada respondeu, emocionado, contendo o choro de quem nunca saiu de casa
para ir embrenhar-se numa guerra que já reputavam vitoriosa. Apenas um aceno
positivo com a cabeça e, então, o trem apitou saindo lentamente, carregando os
novos soldados, como bois para o matadouro.
Na
saída da estação, cumprimentando alguns velhos conhecidos das Arcadas que
também mandaram seus rebentos para o front, doutor Antenor, num arroubo
patriótico e advocatício, dirigiu-se a um pau d’água que, sentado no meio fio,
assistia tudo com uma expressão de inocência e interrogação:
-
São Paulo precisa de sua coragem, homem! Aliste-se!
E
o pau d’água, banguela e com a cachaça escorrendo pelo canto da boca, responde
após um brevíssimo segundo de reflexão etílica:
-
São Paulo não é aquele santo que tem uma espada e um livro nas mãos?
-
É sim, senhor! Respondeu prontamente o advogado, ao que fora confirmado pelos
presentes, um deles, inclusive, padre recém ordenado, vigário do interior que
viera para se despedir de um irmão soldado.
O
pobre diabo do cachaceiro olhou ao redor, ajeitou a gola puída do paletó
encardido e respondeu decididamente:
-
Então, se ele for à frente eu vou depois. Não sei usar espada, mas
fico segurando o livro dele pra ninguém roubar.
Tombou
na calçada com a garrafa da cana quase vazia. Dispersou-se a concentração
emudecida.
Rodrigo
Ruiz
http://1932emprosa.blogspot.com.br/
Eric Apolinário
Pesquisador - |1932|Frente Leste|
e-mail: trincheira1932@gmail.com
whatsapp: (19) 98102-7351
Eric Apolinário
Pesquisador - |1932|Frente Leste|
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